15.5.15

Pensar dói

O exercício consiste em desaparecer no seu próprio “eu”. Num esquecimento tão, tão profundo, que se esquece no finito. A imensidão de pensamentos parte do deduzível – nunca de instinto – e especificadamente de opções e segundas intenções. O ser humano a cada passo que se torna mais inteligente, nota que cada vez o é mais difícil de progredir. E seguir em frente ignorando o ignorante, o absurdo absoluto, o nada inabalável, a crueldade do silêncio, a agonia da solidão, a sensibilidade de ser, o beijo que não se esquece, o suspiro e os tragos nos cigarros, é aceitável, mas insuperável – e maldosamente insuportável.                                 
                             
Uma avalanche de imagens fere o cérebro humano constantemente. E com isso a maioria se engana, achando que isso é pensar. Quando na verdade, é imaginação sem criatividade e uma cópia realizada por seus sentidos (não confiáveis), projetando na voz interior a falsa sensação de pensamento. Esses comuns humanos não realizam cogitações, apenas confirmações – sem fundamentos – registrando consigo dados, acostumados a inserir realidades não sigilosas, engolir vomito alheio, finalizam projetando, além de tudo, a falsa segurança; que para alguns, é melhor que nada.
      
Ao ter em mente que o livro do mundo é o que mais nos ensina, precisamos de alguma maneira, abrir os olhos.

O gozo do real pensar é saber que não se chega a lugar nenhum. Que iremos, decerto, morrer – e sozinhos. Portanto, pensar nos leva a consciência, o que é perigoso, mas quando pisar no chão e já não sentir o peso das botas, quando um dente podre doer e cair deixando a carne indolor, a amplitude da loucura, a insanidade do desespero, e o pulsão de explodir; irá trazer um semblante sério com olhar sofrido, e o saber de que a inteligência – como o amor – não é suficiente; e no horizonte, o enxergaram com um sorriso faceiro e depois te pegaram rindo à beça. 

21.4.15

A vida me cobra, com consequências, uma divida que não posso pagar

            Quando digo que gastei 600 reais com livros, todos me chamam de otário; e, quando sigo para o término da frase aonde digo que 300 reais foram apenas para livros que já li, mas que quero deixar na estante, dizem que sou louco.

            “Nunca que eu faria isso”, disseram-me. Indignados: isto é coisa de gente maluca! E continuam:

– O que vai fazer com tantos livros?

– Que tal, ler? – Respondo, naturalmente.

            O clima fica denso. Os olhares se cruzam suspeitos como se perguntassem mentalmente uns para os outros “o que é isso?”.

            A novidade é que isso já não é novidade. Provavelmente chegaremos, mais cedo ou mais tarde, num futuro onde a necessidade de ler seja apenas futilidade. Não acredito que será tão rápido assim, mas nem que tarde a chegar. (Colocarei culpa principalmente nas livrarias que cobram preços absurdos nos livros, e em CDs também). Os sebos, às vezes, são dádivas dos deuses, assim como poucas, bem poucas bibliotecas – e desenvolvam vocês, cada um por si, um jeito, uma maneira de retirar os livros desses lugares, de uma vez por todas, e os guardem em suas casas e se possível os leiam. O mais legal disso tudo é, que quando não houver mais locais com livros, poderemos todos montar uma sociedade e nos matarmos de mãos dadas.

– Por que não juntou esse dinheiro para comprar algo melhor?

– A biqueira tava fechada. 

9.4.15

O poder da leitura

            Nunca fui muito bom em reconhecer atos – seja lá de origem boa ou má. Não sou bom em reconhecer a história e nossos “heróis”. Possuo problemas de desconfiança. Não reconheço nem minha própria sombra que ri encostada numa parede imunda dum beco qualquer. Reconheço, é claro, o poder do álcool.

            Nesse dia passavam do meio-dia e o sol não ardia tanto – como é de costume – e o céu estava com um tom de azul limpo que não me agradava. Comemorava uma coisa qualquer com um povo qualquer, do trabalho, acho. Eu poderia mendigar, roubar, matar. Mas trabalho. E em plenas duas horas e pouco da tarde corria o risco de morte, como sempre, em todo lugar – e bêbado. Despedi-me. Fui de caminho ao metrô, e, no caminho, fui enquadrado.

– Mãos pra cima, moleque! – Disse o seu Polícia. – Vai, vai seu merdinha!

            Os outros repetiram o refrão. “Vai-vai”, e apelidinhos: merdinha, bostinha. E não eram nem três horas. A maioria das pessoas ainda estavam fazendo digestão. O céu não estava nem nublado e não aparentava que iria chover. Gritavam, tentando entrar no psicológico e tocar numa ferida inexistente tentando me transferir uma culpa nula e fazer-me tremer na base. Porra; tremi, mas bem pouco.

– Vai seu maconheiro! – Gritava gesticulando com uma arma qualquer na mão.

            Permaneci no silêncio por um momento enquanto me revistavam. Nenhum arranhão, nem drogas, nem armas, nem tatuagem e não, nunca fui para a FEBEM. Senti, então, após o interrogatório em praça pública – em céu aberto –, que estava prestes a ser liberado, pois, o seu Polícia havia me revistado mais de três vezes.

– Rapaz... – Resmunguei meio sem pensar. – Se passar as mãos por aí mais uma vez irá ter que me pagar um café... – e ri.

            Infelizmente, a piada não foi recebida com o sucesso que imaginei. Diabos, nem era tanto uma piada, eu até que estava me excitando. E broxei; depois de duas botadas na canela e várias cacetadas – com cassetetes – nas costas. Fiquei moído. Nem senti gosto de sangue. Nem me pagaram um café. Voltei para casa e dormi depois do banho, sentindo-me uma vitamina de frutas batida no liquidificador.

***

            O dia incrível; aconteceu à noite. Surpreendente, de fato. Escuro demais e frio demais depois das meia-noite. Mendigos carentes se abraçavam e o amor está somente no improvável. A vida é sempre quase tudo igual – um bagaço. Imensa é a recompensa: morrer. E em morrer, eu estava ficando craque. Não é babaquice. Saí de casa do centro e fui atravessar uma ponte para a parte BAIXA da Mooca.

            Coloquei uma calça jeans grande e um tênis bacana para correr e camiseta e por cima uma blusa de frio cinza maior que eu. Saí do prédio e corri, em menos de cinco minutos já estava perto da Mooca.

            O frio formigava e a rua estava deserta. Soltei um peido e ri – faz parte do show, também.

            Puxei o livro do bolso detrás da calça, e procurei lê-lo. Quando menos espero, vejo o piscar das luzes: perigo. Os Polícias. Continuei andando – meio traumatizado – como se não devesse nada: e nem devo. Mas eles nos fazem, em algumas ocasiões, dever. É o dever deles. Ossos do ofício – não do orifício. Continuei andando pensando em fazer filhos e lendo um livro – que não faz diferença qual seja – e cheguei perto deles e pude perceber, sem acreditar, que eram quatro viaturas. Quem tem cu, tem medo. Como quem não quer nada; apontei para uma linha do livro, procurando também pela luz do único poste da rua deserta e perguntei para o Policial maior:

– O que é “genebra”?

            Ninguém soube dizer. Continuei andando e quando estava de costas para eles, ouvi um grito:

– Cuidado na ponte, jovem. – Um Polícia, quase meigo.

            Coloquei o livro no bolso detrás, de novo, onde quem admirasse o balançar duro e desengonçado dos meus quadris pudesse ver o título e o autor do livro.


            

5.4.15

Feliz páscoa

            Época de páscoa, e havia esquecido o que supostamente deveria ser comemorado. Nascimento de Jesus? Ou quem sabe sua morte? Ressurreição? Apocalipse? E que diabos isso tudo tem a ver com ovos e coelhos? Era demais para mim, então ignorei.

            Mas não por muito tempo. Logo mamãe pediu-me um ovo: e o mais barato custava caro, 20 reais. E com 20 reais, eu podia comprar hambúrguer, que é melhor. Ou várias barras de chocolate, aonde na lógica, sairia mais lucrativo: pagar menos e comer mais.

            Resolvi então comprar o ovo com recheio de maracujá e mesmo que a intenção tenha sido boa, a aceitação da ideia nem tanto. Até por que, ovo deveria ser de chocolate, não de fruta. De qualquer forma, mamãe devolveu na mesma moeda: de jantar, ovos mexidos.

            Alguém abriu a boca para dizer que páscoa é um dia de “passagem”. Comemorar felicidade, se não me engano. De algo divino. Como o Homem-Aranha dos anos 60. E bom, como em todas as outras datas comemorativas, prefiro dormir. É tudo uma bobagem. Não cito capitalismo e revoltas contraditórias por que pretendo parecer menos besta. Pelo menos, mamãe comprou peixes e eu uma caixa de hambúrguer; tem vinho na mesa e estão todos convidados para o churras.  

1.4.15

Para tudo quanto é lado


            O sino do meio-dia tocava indicando que acordei cedo, logo; deveria voltar a dormir – mas não consegui, infelizmente. A vida numa tarde de domingo é tão vida como numa manhã de segunda-feira, mesma bosta. Assim, vivi aquele momento, sendo dominado por um sonho, dentro de outro sonho, e quando acordei, pensei estar sonhando, porém acordei de novo, e, só quando pude mijar na tampa da privada, realmente descobri que era um sonho, mesmo que não sendo um dos melhores, delirei eternamente. O infinito é magnífico, pensei.

            A luz no meu apartamento havia sido cortada por motivos secretos do governo. Água ainda tinha, em todas as pias. No chuveiro que era triste, aquela água gelada. Ao menos não cortaram, o que seria sacanagem, como eu vou fazer suco sem água? Difícil. Porém, pensei depois, que se cortassem a água, eu poderia usar o álcool da cozinha e assim colocar tudo no liquidificador, álcool em gel, pó de laranja tang, pedaços de gelo e bater tudo, mas é... Não tem energia.

            Um sujeito bateu em minha porta:

- Ei!

- Quem é?

- Abre aqui!

            Então abri.

- Por que está assim cara?

- Como?

- Está um caco!

- Não é fácil... Requer treino e disposição.

- É sério mano... Fica assim não! – e completou – NÃO DESANIMA!

- O.K.

            Ficou parado ali na frente da porta por alguns instantes. Uma pomba apareceu na janela, cagou, foi embora. Bela merda.

- E ai?

- Que?

- Cadê ela?

- Quem?

- Ela...

- Ela quem?

- Ta me zoando?

- Não...

- CADÊ ELA?

- Não sei...

            O rapaz ficou parado. Eu não sabia se o conhecia. Certamente me era familiar. Alguns aspectos parecidos com os meus... Pude notar que o sujeito era magro, magro mesmo. Olhos claros, verdes. Cabelos negros, encaracolados. Com isso e mais algumas coisas, era um grande bosta.

- CADÊ ELA PORRA?! – gritou exageradamente.

- Qual é cara?

            Apontou o dedo na minha cara e repetiu, desta vez, lentamente.

- Cadê, ela?

            Não sabia o que fazer. Comecei a me assustar. Pensei em fechar a porta e me esconder debaixo do cobertor. Certamente continuaria gritando do lado de fora, até a hora de se irritar mais e arrombar a porta, com qualquer força sobrenatural que encontrasse no lixo perto do elevador. Achei melhor encarar.

- Não sei.

            O sujeito rapidamente tirou uma pistola detrás da sua cintura e colocou o dedo no gatilho, afirmando que coragem ela tinha, só não educação.

- Eu não vou repetir mais uma vez... Escuta bem... Onde ela está?

            Neste momento pensei em fingir um desmaio. Talvez uma convulsão. Ou assumir homossexualidade e pedir o sujeito em namoro. Quase dancei uns passos de lambada, porém, achei melhor dizer:

- Ela está, onde ela sempre esteve.

            O sujeito parou. Colocou as mãos sobre a cabeça. Caiu de joelhos. Chorou. Chorou muito. Gritou no corredor; uivos de lobo. Achei que se ele fosse assumir homossexualidade, deveria ter feito antes –, e eu estava com medo.

- Mano...

- Que?

- Ela está...

- Sim.

            O sujeito levantou. Arrumou suas roupas. E saiu. Ouvi quando o elevador chegou e o mesmo foi-se embora.

            Pensei bastante em cortar o cabelo. Só que eu já estava devendo um corte no único cabeleireiro do bairro. Estava faminto. Desempregado. Tinha até dia 10 para entregar o apê – era dia 2. Os dias vão passar devagar, pensei. Uma chuva escandalosa se formou aos céus e presenciei um pequeno furacão ao lado sul da cidade, vi da minha janela, que ficava no 18º andar. Tirei o periquito que estava na gaiola e cortei sua cabeça com faca de serra da cozinha – seus olhos continuaram piscando e suas assas ainda batiam. Depois de um tempo, não mais. Puxei as penas que pude e raspei um pouco com a própria faca. Joguei álcool numa latinha de NESCAL e acendi com um fósforo – um belo fogão. Coloquei o pássaro em cima e pouco tempo depois estava pronto. Comi. Era bom. Tinha gosto de frango. Sabe o que dizem não é? Mais vale um pássaro no estômago do que dois voando...

            Quando passei pelo corredor, os outros três que estavam na gaiola cantavam num soneto engraçado para meus ouvidos. PI PI PI PRA CÁ, PI PI PI PRA LÁ. Era PIPIPI pra tudo quanto é lado.

            Deitei no chão e fiquei pensando.

            Bateram na porta, pouco tempo depois.

- E ai?

- Que?

- Cadê ela?

- Ela quem?

- Cadê ela, cara?

- De novo isso?

- Sim. Cadê ela?

            Fechei a porta e me escondi debaixo do cobertor. O que não adiantou de nada, por que a porta não tinha tranca. O sujeito entrou.

- TA FUGINDO É?

- Não. Acabei de almoçar. Deu sono.

- CADÊ ELA PORRA?

            Suspirei.

- Ela está onde ela deve estar. Onde sempre esteve.

- Ah, é?

- Sim.

            Antes do disparo a única coisa que pude ouvir foi um:

- Então dorme aí.

            POW!  

28.6.14

Henriquewood


                                                                     "Sinta mais. Pense menos." – Charles BUKOWSKI.

            Entrei nesse tal bar, grande e limpo, em um cruzamento com a Rua Augusta, à espera de Henrique. Era tão limpo que nem parecia um bar, tinha mais pinta de salão de beleza. Achei uma banqueta vazia e sentei. Pedi uma cerveja. Eram quinze para as seis da tarde e o salão estava lotado. Muita gente em pé. Alguns pequenos grupos sentados. Outros dançando uns sons esquisitos que saiam de caixas sonoras embutidas por todo lado. A maioria era jovens, limpos, felizes, sorridentes – contemplando a ficção que era suas vidas melhoradas. Terminei a cerveja e esperei. Henrique estava atrasado.

            Olhei em volta e contei; duas mesas de sinuca, oito mesas para clientes – sem contar as do lado de fora –, um alvo de dardos solitários, duas portas para banheiros. Simpático, se não fosse pela muvuca. No relógio marcava seis e dez, nada de Henrique.

            Observei que uma garota vinha em minha direção, uma loira meio torta, com aspecto de estátua-viva da praça da sé, olhos vermelhos de marola. Estava acompanhada.

- ei, me paga um drink? – me perguntou.

            Olhei para ela, depois para o rapaz que estava de acompanhante. Olhei em minha volta, nada de Henrique. Olhei para trás, virei, e perguntei:

- quem? – desconfiando – Eu?

- sim, claro. – toda sorridente.

- pede para o rapaz aí. – apontando para o acompanhante.

- quem? – disse ela – ele?

- sim, eu não quero problemas. – e pelo que sei, ninguém nunca quer, né?

- ele não é nada – disse ela –, ele não é ninguém!

            Opa, que coisa. Quem ela seria para dizer que o rapaz não é nada? Estranho. Mesmo que eu os achasse iguais uns aos outros, uns nadas, eu não cheguei nem a dizer nada. Olhei o rapaz. Lacrimejava. Bem pálido. Tremia. Estava apaixonado, o coitado. Parecia um espantalho com olhos de corvo. Esbanjava tristeza. Quase me fez chorar. Pensei em abraça-lo, mas seria estranho. Resolvi não fazer.

- não me leve a mal – eu disse –, ou leve, mas cai fora.

- grosso! – disse ela –, não sabe o que ta perdendo. – e se foi.

            A gente nunca sabe o que ta perdendo, até perder. É claro. Foi melhor assim. O rapaz, acompanhante, sorriu. É impressionante o quanto as pessoas se contentam com pouco. O mais impressionante, é o quanto elas aguentam passar por um simples osso de tutano. Pedi mais uma cerveja, veio bem gelada. Vi o gelo no copo, esperei descongelar. Esperei Henrique. Ouvi várias risadas. Eu não queria estar lá. Antes de entrar, ao ver o lugar, eu não queria entrar. Existem tempos em nossas vidas, que tudo que queremos é afastamento total, de tudo – principalmente das pessoas. Mas tudo bem, eu não tinha mesmo consideração por nada além do meu prazer barato e egoísta. Pedi mais uma garrafa, para ir descongelando. E esperei.

            Espreguicei-me pensando que Henrique não viria. Olhei em volta e nada. Já passava das seis e vinte. Cheguei a esperar tanto, que já não era à espera de Henrique e sim, à espera de um milagre. Sentia-me bem depois da terceira garrafa – mesmo que andasse muito fraco para beber, como sempre. Logo depois, após poucos minutos, Henrique senta ao meu lado. Ufa.

- e aí, puto – ele disse –, foi mal o atraso.

            Um bom sujeito, Henrique. Um homem muito valente. Semana passada havia vendido seu antigo contrabaixo, e agora estava gastando o dinheiro com bebida – demais. Acendeu um cigarro e passou pra mim. Acendeu outro, deu uma tragada. Já era noite, o ar fresco, em geral, agradável.
           
- onde vamos agora? – perguntei.

- por aí – respondeu –, ainda não sei.

            Saiu andando na frente, segui. Ele fazia muito disso, não de propósito, mas fazia. Talvez não tivesse muito senso de direção.

            Andamos meio a esmo, mas o local era conhecido. Descemos toda a Rua Augusta e depois subimos outra paralela. Saímos na Avenida Paulista. Fomos até o MASP. Sábado à noite. Transbordava luz e sons para todos os lados. Henrique conversou com um ou dois rapazes, eu olhava os carros, ônibus, o asfalto, as cafeterias, arbustos, árvores – bom, tudo parecia interessante, a não ser as pessoas.  

- vam’bora, porra!

            Desliguei-me dos devaneios e continuei seguindo.

- como ta, mano? – ele disse.

- bem. – eu disse.

- então tá.

            Andamos mais um pouco e chegamos a outro bar, também cheio, mas de dois andares. Subi atrás de Henrique. Com certeza ele estava perdido.

- essa é sua ideia? – perguntei.

- a melhor que eu tive hoje. – respondeu.

            Concordei, até porque, era ele quem tava pagando.

            Sentamos em duas banquetas perto de umas das pontas. Atrás, um grupo de quatro gordos brancos barbudos e um fisiculturista amador gargalhavam, gritavam, zombavam e enchiam o saco de todo mundo.

- HAHAHAHAHA! – disse o bombado –, olhem esses dois magrelos!

- acho que ele ta falando da gente. – cochichou Henrique.

- jura? – eu disse

            Não passou disso. Era só uma piada de boas vindas. Para esquentar o clima. Logo o fortão começou a falar de quando tinha ido pra cama com uma garota, e explicou, com detalhes, para os outros, como era. Não que eles não soubessem, mas foi algo que por sinal, os fez rirem mais – mesmo que não houvesse um pingo de graça. É muita hipocrisia sair por aí falando de suas intimidades, coisa de gente baixa, mau caráter. Estúpido contar vantagem em algo desse gênero. Aliás, o clima não estava assim tão mal.

- sabe – disse Henrique –, vou sentir falta do Brasil.

- é mesmo?

- sim, o clima, as situações, a bagunça no geral.  

- acho que tá certo.

            Pedimos uma cerveja. Bebemos sem dizer nada. A atendente trazia mais e mais. Era pequena, cabelos castanhos, olhos também. Usava batom. Sorria.

- é disso que vou sentir falta. – disse Henrique, apontando a garçonete.

            Sorriram um ao outro. Ele disse em tom suficiente para ela ouvir com ouvidos sensíveis.

- tá certo, cara. Mas talvez ir embora seja pro seu melhor.

- é o que tento dizer a mim mesmo.

            As garrafas vieram em alta quantidade simultaneamente. Eu perderia a conta, se estivesse contando. Continuamos a beber e conversar. De repente sinto que não estou mais lá. Vejo Henrique conversando com a tal garçonete. Não estou mais lá. Todos fazem seus papéis, eu me perco, confuso, sem saber qual é o meu. Continuo levando o copo à boca. Henrique continua enchendo os copos – o meu e o dele. A garçonete continua com seus movimentos pélvicos, sugerindo a Henrique, o máximo que sua mente pode imaginar. Alguém grita por ajuda em algum beco escuro. O cheiro no ar é de fornicação, carnificina, mijo. Os sons cada vez mais irritantes. Não vale a pena, não vale.

            E aí, de repente, surpreendo-me quando me pego em casa, (na casa de Henrique). Estou sentado no sofá onde só tem um espaço e Henrique está com a Garçonete, que há essas horas já está aberta para negócios – apenas com Henrique – e nos liberou seu nome: Judia. Engraçado, não?

            O lugar onde Henrique mora é pequeno. Há espelhos em tudo quanto é lado e ninguém sabe pra que. Os espelhos... Servem de que? Já parou para pensar nisso? Sabe... Quando você olha para o espelho, como tem certeza de que aquele reflexo é o seu? Por que é seu? É realmente você? E como sabe que é você? Sim, deve ter alguma explicação comprovada cientificamente. Mas quando você olha no espelho, o reflexo que vê, é o mesmo que queria ver? Você não sabe. Mas sabe como eu sei disso? Por que Henrique sabe disso.

            Quando acordei, vi que Henrique já estava acordado. Fazia café.

- cadê Judia? – indaguei.

- foi embora, ia pegar o turno da manhã hoje.

- vai vê-la de novo?

- sim, hoje à noite.

- gostou dela, não foi?

- um pouco.

            Levantei-me e fui ao banheiro. Lavei o rosto. Olhei para o espelho, mas por quê? Ninguém sabe. Ninguém nunca sabe. Voltei para a sala e me servi de café preto puro.

- ta um caco hein. – Henrique disse.

- cale a boca, todo mundo tem cara de bunda quando acorda.

            Voltei para meu café. Percebeu como o café pode salvar sua vida? É algo feito com o intuito único de ser aquilo mesmo. Ele não força. É feito para aquilo e só faz aquilo. Incrível como algumas coisas fazem tanto sentido e outros não.

- Henrique – eu disse –, um cara me disse que eu me acho melhor do que os outros por que eu leio livros, isso é verdade?

- não.

E ai nós rimos, rimos, mas rimos tanto, tanto, que puta merda! Até pensei que tínhamos enlouquecido. E então tive que me levantar, terminei o café e rodei pela casa por que nada mais fazia sentido.

- este mundo que vivemos é mais fictício que o de “Harry Potter”. – Disse Henrique.

- admito, Harry Potter faz mais sentido que a “realidade”.

            Olhamos pela janela e o clima estava bom. Sabe aquele clima, limpo, suave, claro, com sol e ar fresco? Aquele clima que faz pairar em sua mente que este é o dia? Que tudo vai dar certo e nada pode estragar? Então, infelizmente em algum lugar explodiu uma bomba atômica nuclear 300 mil vezes mais potente do que a própria Hiroshima. Ninguém sabe como, nem o porquê. Ninguém nunca sabe. Só que foi suficiente para explodir justamente no nosso país. Como sei disso? Por que Henrique sabe disso. Sim, nem tudo tem explicação. A vida é tão boa quanto ela precisa ser. Um pombo fritou. Um gato também. Aquele ar quente vinha em velocidade. Boa sorte, Henrique. Tomei mais gole de café, tava frio, mas, jogo esquentou. BUUUUM! Já era. Nem tudo que era pra ser, realmente era. 

30.3.14

Vendendo paçocas na COPA

            Assim que o arbitro assoprou o apito, soou agudo o som do término do jogo. Brasil 1x11 México. Um placar um tanto exagerado, comentaristas especulavam. “Uma tragédia”, na capa de revistas e jornais. Também na página 5, com os garotos de moicanos de joelhos à mercê de suas preces. Neste mesmo jogo, aconteceu o “inesperado” e JOÃO JOSÉ DA SILVA, entrou pelado no meio do campo e marcou um gol da “vitória” – enquanto em seu peito estava escrito com tinta vermelha “NÃO VAI TER COPA!”. Os salgadinhos que estavam a vende e as pipocas eram um espetáculo. Já os torcedores, no momento, raivosos, sentaram aconchegados em poltronas macias e lindas. Um rapaz, com sua filhinha já discutia com sua mulher branca de olhos claros em que restaurante iriam jantar após o jogo; o mesmo, antecipou-se, perguntando onde havia ficado a chave do carro. Todos saíram aos poucos um atrás do outro depois de uns 20 ou 30 minutos. Lá fora, a pancadaria ia solta entre policiais militares e torcedores que ficaram de fora e pagaram para ver o jogo e, outros torcedores de classe-média-baixa que assistia o jogo em um bar a três quadras do estádio. Alguns usavam camisetas de times brasileiros distintos como Corinthians, Palmeiras, Santos, entre outros. Depois de muita intimidação, foi autorizado que os PM tacassem bombas para “dispersar” os torcedores de forma “amigável”, enquanto no meio da fumaça do ar lacrimogêneo os cassetetes apareciam da camuflagem e deixavam hematomas em pessoas que passavam por perto. A bagunça durou pouco mais de duas horas e alguns foram presos. Outros machucados, mas por sorte, nenhuma morte. Países alheios publicavam em seus jornais e passavam ao vivo o desgosto e a má estrutura e falta de educação dos trabalhadores do governo e ele, em si.

            Consegui acompanhar essa matéria que dizia que o jogo da próxima semana seria supervisionado e com a segurança duplicada. Pessoas discutam e a presidenta fez um discurso qualquer sobre nada. Assim, vesti-me e saí para a rua com minha bandeja de paçocas. Um dia cansativo e passar pela Praça da Sé já não era fácil. Lugar onde cabeças dormem. Policiais em cada esquina da rua e mesmo assim, a sensação era de medo. A fase de todos, pareciam que estavam com fome, pensei, que poderiam comprar paçoca, mas não andam com carteira. O dia cansativo como qualquer outro dia, das 06:00 ás 19:00 na rua, com a experiência de que nem todos os churrascos-gregos são bons, voltei para casa, e na T.V. ainda comentavam sobre as tragédias. Boatos surgiram em toda imprensa sobre um grupo de pessoas que marcaram na internet de paralisar o mundo, de maneira chocante, invadindo o estádio, previsivelmente, com mascaras – nem todos tinham dinheiro para compra-la e alguns usariam sacos.

            Neste outro jogo, arrumei meu avental branco e fui para o estádio com minha bandeja e pipocas e paçocas.
           
            O jogo já não era do Brasil. Foi um jogo no qual ninguém brigou, ou gritou muito. Meio silencioso. Porém, a segurança duplicada realmente aumentou. Reconheci o casal de jovens brancos de olhos claros com sua filhinha, eles torciam, no camarote. Olhei para dentro e acenando com a mão o mesmo rapaz me chamou:

- quanto é o saco de pipoca?

- 2 reis, senhor.

- da um.

            Assim que dei-lhe o pacote, ele deu-me uma nota de R$50,00 e disse que eu poderia ficar com o troco. Senti uma tontura e fui para casa, peguei o metro e fui para Sé, depois, cheguei em casa e deitei. Pouco tempo mais tarde, quando liguei a T.V. ao vivo no jogo, passava o momento caótico do jogo, quando jogadores de ambos os times começaram a brigar entre si e torcedores revoltados se agitavam nas arquibancadas. Um grupo todo de preto entrou dos portões à dentro e entrou no meio da briga, obrigando o reforço duplo fazer seu papel. A agressão era tão exposta como algo já previsto antes. Desliguei a T.V. e fui direto para o telefone ligar para minha mulher, que trabalhava na copa de um restaurante na augusta.

- ei, espera aí que eu vou te buscar.

- o que houve?

- ta uma bagunça do caralho, o metro vai estar cheio.

- tudo bem.

            Ouvi um barulho do outro lado da linha como vidros sendo quebrados.

- que barulho é esse?

- uns rapazes aqui.

- que copa barulhenta.

- é, chutaram um balde.

            Após buscá-la e já estar em casa, cheguei e dormi.

            Quando amanheceu nos jornais, o caos foi publicado, quando uma bala de borracha atingiu em cheio na testa de uma garota estadunidense branca e de olhos claros. Seu pai furioso apareceu em tela chorando, o mesmo, socou a câmera e entrou no hospital, pouco tempo depois, o resultado verídico foi o falecimento de uma criança. O caso mesmo sendo investigado, não possuiu tanto espaço nas mídias, uma semana depois, menos pessoas falavam sobre o caso, que publicaram dias atrás “o falecimento de uma noção”. Nos jornais, o foco, era inspirar os jogadores, em busca do HEXA.  

3.8.13

Nadando no nada

     Você esta parado, dentro de um cômodo, de um local qual você chama de casa. Não é uma casa, não é um apartamento. É em um prédio, as pessoas normais chamam de “kit-net”. É no décimo oitavo andar.

     Por ser um lugar pequeno e sem ventilação faz calor, e nos dias que fazem calor, o lugar parece um inferno. Ferve. E baratas surgem de todos os lugares e mais de cem mosquitos de luzes dominam o lugar. E se torna uma batalha. Qual espécie manda mais, qual espécie é mais forte. Não adianta veneno algum, os exércitos dos insetos sempre ressurgem das cinzas. Fogão, geladeira e no rádio. É como se fosse uma comunidade de insetos. Pelo menos não me sinto tão só, mas para piorar é verão. E também tem aranhas.

     Ligo o rádio e começo a ouvir uma música sinfônica, na frequência 103.3. Uma estação que fica com muitos “chiados”. Vou ao banheiro, peço licença para a barata e entro. Não tem porta no banheiro. Procuro um buraco, não é uma privada, é algo parecido com uma fossa. Acima tem uma aranha que fica me observando enquanto urino. A descarga é fraca e por isso precisa jogar um balde d’água quando se usa a privada. Saio do banheiro e me deparo com o exercito de formigas roubando meu açúcar. Eu li em algum lugar que uma formiga consegue carregar nas costas duas vezes o seu peso. Só não sabia que juntas conseguiriam levar 10 kg. Eu mal aguento meu corpo, imagine 10 kg.
                
     Vou à geladeira e procuro algo para comer, um pote de azeitonas, três ovos, pó de café, duas batatas, três tomates e mandioca. O que sobra é gelo e água.
                
     Estou com muita fome, terceiro dia que não coloco nada na boca além de café.
                
     Meu estomago grita, geme.
                
     Vontade de vomitar, mas não tem o que por para fora. Resolvi fritar os ovos. Procurei na dispensa óleo e sal, achei sal. Tinha um pouco de manteiga escondido, deveria estar vencido, a manteiga estava verde. Coloquei todos os três ovos na frigideira, joguei a manteiga e coloquei um pouco de sal por cima. Depois mexi tudo com a colher. Começou a subir um cheiro meio que de mofo junto com um azedo. O ovo estava com uma cara boa, verde com laranja. Coloquei no prato e observei. Com a mesma colher que usei para mexer, levei cheia de ovo a minha boca. Estava horrível, mesmo assim prendi a respiração e engoli tudo. Aquela música sinfônica estava piorando minha dor de cabeça. Desliguei o rádio e deitei no chão ao lado das baratas.

     Não tinha nem cinco centavos no bolso. Iria ir trabalhar às seis horas da tarde, voltaria às seis horas da manhã. Vigia noturno é um trabalho de preguiçoso, passo a noite toda dormindo, ouvindo música no radinho de pilha, às vezes dou uma volta no setor de descartáveis, fumo um cigarro com o outro vigia, conversamos sobre nosso salário, sobre futebol e rimos com acontecimentos hilariantes como: Brad Pitt irá interpretar Platão em um novo filme baseado no livro “A Republica”, de Platão. Ele é um bom ator, porém não para papéis como esse. Como Colin Farrell interpretou tão bem Arturo Bandini em “Pergunte ao pó”, o escolheria para o papel de Platão.

     Eram quase lá pelas quatro da tarde. O horário passa rápido quando não se tem nada para fazer a não ser esperar a hora de ir trabalhar.

     E sai de casa, me despedi de minhas companheiras e tranquei-as.
               
     Estava na frente do elevador, apertei o botão e aguardei. Sinto um incomodo no meu braço direito, começo a coçar. De dentro da minha blusa cai uma barata ao chão. Senti-me amado. Aonde vou, elas querem ir junto. Esse tipo de carinho que todos deveriam ganhar de seus conhecidos. O elevador chega e eu entro. Digo que não pode ir comigo, não iriam trata-la de certa forma.

Lá fora é perigoso, fique aqui. – Eu disse.

     Dentro do elevador, fecho a porta e aperto o botão. Como o elevador é velho e fica fazendo barulhos consigo ouvir o ranger das cordas de aço. Mais cedo ou mais tarde elas irão estourar. Seguro-me no ferro que estão em baixo o espelho e fecho os olhos. São os três minutos mais tensos dos meus dias. E ele desce como se estivesse despencando, numa velocidade incrível. Se ninguém em outro andar o chama, ele desce direto. Aproximadamente oitenta quilômetros por hora. E sinto um frio na barriga.

     E a moça do elevador diz:

Térreo. – Com isso abro os olhos, me sinto seguro e molhado.
                
     Continuo o resto do caminho andando com dor na lombar. Meu joelho esquerdo é quebrado, então ando mancando. Não me orgulho de ter quebrado o joelho andando de bicicleta. Orgulho-me de ter pegado atestado de um mês de repouso, não precisei ir trabalhar. Foi a semana mais feliz da minha vida. Lembro-me até de ter comido peito de frango. Esses sim eram bons tempos.

     Sigo subindo a ladeira da Rua Tabatinguera, e viro na Rua do Carmo. Vou em direção a Praça da Sé e chego ao meu local de trabalho. Em uma lojinha onde vende doces e descartáveis. O nome da loja é “Doces e Descartáveis”. Não vende papel higiênico, nem produtos de limpeza, a única coisa descartável que vende são copos. Vários doces. Porém não gosto de doces. E vou para meu posto, um quartinho minúsculo onde tem dois colchões. Um para o outro vigia e um é meu. Para que possamos deitar.

     Assim que já estou me acomodando no quartinho, colocando água no fogo para ferver e fazer café. O outro vigia se aproxima.

Café de novo Antonio? – O vigia diz.

Sim. – Eu respondo.

Sim, entendo... Você está bem? Parece-me pálido demais. – O Vigia diz.

Não, não estou bem. Ficaria bem se você pagasse os míseros cinco reais que me deve. – Digo. 

Calma, fique tranquilo... Eu irei te pagar. Sou um homem de palavra. Agora não tenho seu dinheiro, mas vou te pagar. – O Vigia diz.

     Um som devastador sai do meu estomago. Era como que se as lombrigas estivessem brigando por goles de café. O Vigia ouve o escândalo dentro de mim.

Que tal um jantar para pagar minha divida por enquanto? – Pergunta.

Jantar? Seria uma boa... Na situação que estou não negaria nem um osso. – Respondo.

Tudo bem, este é o plano. Esperamos todos irem embora. E quando for meia noite, você me encontra na frente da lojinha tudo bem? – O Vigia diz.

Tudo bem, te encontro lá. – Digo, e vou coar o café.

     Termino de coar o café e fecho a garrafa. Sem forças para apertar o botão com pressão acima da garrafa, desmaio no colchão.

     No meio de um sonho qual eu estava nadando em um mar aberto e tudo em volta era mar, eu acordo com o Vigia jogando um balde de água em mim.

Eu não disse para você estar lá na frente meia noite? – Ele me pergunta.

     Parecia alvoroçado e começa a me apressar.

Anda, vamos logo... Pare de mancar... – Diz.

     Puxando-me pela blusa. Estamos fora da lojinha e ele fecha a porta. Quando menos percebo estamos ao lado de uma fonte que fede a urina, do lado do coração de São Paulo.

     Estamos em uma fila, e não sei por que tenho que pegar uma fila na Praça da Sé depois da meia noite. Então pergunto ao Vigia o por que. Ele diz que essa é a regra, não podemos furar a fila se não arrancam nossos braços. Mesmo não entendendo fico igual a um peão no xadrez, só ando um passo ou dois e apenas para frente.

     Uma mulher velha com rosto feliz me entrega um dois pões franceses duros. E sem saber o porquê eu agradeço. Começo a comer o pão, e um homem atrás de mim diz:

Espera pela sopa meu filho, o pão molhado fica mais fácil de engolir. – Com um sorriso de três dentes.

Ah sim, muito obrigado. – Eu respondo, com um sorriso no rosto.

     E por um momento me sinto feliz e minhas lombrigas não estão me mordendo por dentro. Existe outra coisa para elas morderem, pão.

     Chego a frente a uma Combe e um rapaz barbudo me estende uma garrafa pet com a ponta de cima cortada, e dentro tem uma sopa de legumes com alguns pedaços de carne.

     Junto com o outro Vigia pegamos a sopa e os pães e voltamos para a lojinha. Sentados em nossos colchões terminando de comer a sopa e os pães, esquento o café.

Eu disse que iria te compensar amigo. – Diz.

Pelo menos por enquanto. – Retruco.

Tem um pouco de sopa na sua barba. – O Vigia diz.

     Me limpo e acendo um cigarro com o fogo do fogão improvisado.  Sinto-me bem, me sinto com força e possivelmente aguentaria mais de 10 kg de açúcar. Sinto-me uma formiga. Conversando com o outro Vigia, entro em um assunto sobre microondas.

Eles são essenciais em uma casa. Você pode fazer o que quiser neles. – É o que o Vigia diz.

Mas são caros? Consigo fazer sopa neles? – Pergunto.

Não são muito caros, e você pode fazer tudo neles. E o melhor, sai mais quente que água do seu chuveiro. – Ele diz.

     Porém não sabe que meu chuveiro está queimado.

     Então tenho uma ideia.

Ah sim, então, vou tirar um cochilo. – Digo e viro para o lado da parede. O lado direito.

     Cinco horas da manhã e acordo após várias braçadas. Gosto de nadar, nos meus sonhos sou como um peixe.

     Acendo um cigarro, e vou para frente da lojinha. Dou umas tragadas e observo o nascer do sol. O clarear. O rapaz que estava atrás de mim na fila da sopa passa empurrando um carrinho de supermercado, e acena para mim. Aceno de volta.

     Meu patrão chega e o ajudo a levantar a porta.

Senhor João, você poderia me arranjar um adiantamento? – Pergunto.

Mas garoto, para que você quer um adiantamento? – Responde.

     Nunca gostei que respondessem minhas perguntas com outras perguntas.

Preciso comprar um microondas lá pra casa, acha que pode me adiantar? – Digo. 

Você acha que posso te adiantar? – Mais uma vez, responde com uma pergunta.

Senhor. – Digo.

De quando você precisa garoto? – Pergunta.

Duzentos e cinquenta está bom. – Digo.

Tudo bem, mas irei descontar da sua hora extra. – Diz, e me da o dinheiro direto de sua carteira de couro.

Obrigado Senhor. – Digo e vou embora.

     Voltando para casa, descendo a Tabatinguera. Passo em uma loja de moveis usados na rua de onde eu moro. Lojas Barabras. E procuro por um microondas, acho um amarelo e grande. Parece a tela de um computador.

Quando está esse? – Pergunto ao vendedor.

Duzentos. – Diz.

Faz cento e cinquenta? – Pergunto.

Não camarada, é o preço da loja. Ta afim ou não? – Pergunta.

Ah sim, tudo bem. – Digo e entrego o dinheiro e espero ele embrulhar.

Ta esperando o que camarada? – Pergunta.

Não vai embrulhar senhor? – Pergunto.

Acha que isso aqui é Casas Bahia meu chapa? Pega ai e sai andando... Demoro? – O Vendedor diz.

     Sem entender nada, pego o microondas e vou em direção ao meu prédio. Antes de entrar olha para cima, ele quase encosta no céu. O microondas é pesado. E tem rachaduras no prédio. Sinto que a qualquer momento ele pode cair.

     Abro o portão da frente com o pé e entro no corredor para ir ao elevador. Uma mulher gorda abre a porta do elevador e eu entro. Agradeço pela gentileza. E aperto o botão para subir. E fecho os olhos. Cinco minutos de tensão, porque o elevador parou no décimo primeiro andar, e então chegou ao décimo oitavo. Salvo.

     Abro a porta e revejo minhas amigas, quando acendo as luzes elas se escondem debaixo dos móveis. Talvez não gostem de luz. Talvez sejam vampiras. Coloco o microondas na tomada e o ligo. Pego a mandioca na geladeira e deixo para esquentar por cinco minutos. Enquanto a mandioca esquenta, vou para o banheiro e ligo o chuveiro. Tomo um banho rápido, até porque com água gelada não da vontade de se molhar.

     Termino e me seco. Vou para a cozinha e a mandioca está com um cheiro bom. Tiro do microondas e está quente, quente demais. Deixo em cima da mesa para esfriar.

     Fico observando o microondas. Foi o dinheiro mais bem gasto na minha vida. Coloco uma bermuda e meu chinelo e vou para o mercadinho da esquina. Compro com os cinquenta reais que sobrarão, comida de microondas. Pipocas, hambúrgueres, miojos e sopas. Também uma lasanha dentro de um alumínio. Igual às marmitas.

     Como trabalho vinte e quatro horas no dia, tenho as outras vinte e quatro horas para descansar.

     Arrumo-me e vou para o pátio de uma igreja que fica a uma quadra de onde eu moro. Três minutos de tensão para descer. E quando chego ao pátio, sento na escada e fico tomando um sol. É quase onze horas. E sem perceber adormeço nas escadas. O sol era forte, as nuvens eram brancas. E crianças jogavam bola e andavam de bicicleta.

     Sonhando mais uma vez com o mar, o mar aberto... A água cristalina. Acordo molhado, da cabeça aos pés.

     Estava chovendo, chovendo forte. Era uma chuva com ventos e granizos. Tentei imaginar como um dia tão lindo poderia ter se tornado naquilo? Parecia uma tempestade, e os barulhos dos trovões impediram de que eu pudesse ficar ali pensando sobre a virada total climática. Com isso fui correndo em direção a meu prédio, e quando estava atravessando a rua ouvi uma buzinada e pulei para a calçada. Um carro quase me atropelou. Um menino de bicicleta me atinge e os dois caem. Odeio bicicleta. O menino levanta a bicicleta e começa a pedalar com mais velocidade, antes que eu pudesse dizer algo. Meu joelho começa a doer. E mesmo mancando tento correr para meu prédio. Todos estão correndo para seus lares. Guarda-chuvas estão voando. Quando viro para a minha rua, vejo que parece uma piscina. Ou por ser muita água, um mar. Um mar podre, nojento, cheio de lixo e um cachorro. Mas ele parece feliz. Passei ao lado dele. E o cachorrinho sorriu. A água vinha na minha cintura. Consegui entrar no meu prédio. A energia tinha acabado. Não quis esperar, a água já havia entrado no prédio. Então resolvi subir até o meu andar. Dezoito andares de escada, e meu joelho doendo.

     Depois de aproximadamente vinte minutos, estou no décimo sétimo andar e por causa dos meus chinelos molhados e escorregadios, escorrego e caio para trás. Voltando para o décimo sexto andar. As luzes de emergência se apagam. E meus dois joelhos estão doloridos demais. Abre um pequeno corte na minha testa e começa a sair sangue. Agarrando no corrimão consigo chegar ao meu andar. E me arrastando e escorrendo na parede chego na porta do meu “kit-net”.

     Procuro uma toalha e me seco, a maldita energia voltou. Passo água no meu sangramento e colo um Bandaid.

     Não estou arruinado por completo. Porém abro a geladeira e vejo que está desligada. Olho na tomada e ela está conectada. Então logo percebo que a geladeira queimou por causa da queda de energia. Agora sim, estou arruinado. Toda minha comida que está ai dentro vai se perder. Então para não perder, resolvo colocar no microondas para fazer tudo, já que vou perder, é melhor comer tudo de uma vez só. Então coloco a lasanha para esquentar cinco minutos. E as outras coisas eu deixo em cima da mesa. Vou para o banheiro secar e quando entro no cômodo de frente está todo molhado, meu colchão, meu rádio.     
       
     Ouço um estralar. Um barulho. Quase um choque. Um tiro. É meio que um “pipoco”. E vou para a cozinha, e vejo o microondas entrando em chamas. E só depois dos cinco minutos corridos que eu lembro o que o outro Vigia havia me dito:

“Não coloque alumínio e nem vidro dentro do microondas”.

     Eu não havia dado importância para isso. E meu microondas estava queimado, minha lasanha preta e pegando fogo. Minha comida toda em cima da mesa, para estragar. Minha geladeira queimada, preste a inundar minha casa com o gelo que ira derreter e virar água. Os outros cômodos e o corredor já estavam inundados pela água que entrou de baixo da porta. Meu colchão fedia mais que o cachorro surfista que estava no mar de merda junto a mim. Não me sobrou nada. Como poderia eu ter perdido tudo em uma enchente? No décimo oitavo andar? Perdi meu microondas, minha geladeira, meu colchão. Minhas amigas baratas sumirão. O cheiro de mofo mais forte surge aos poucos.

                Bom, existem dias que não foram feitos para dar certo. 


     Ligo o meu rádio, um caixa está muda e a outra funcionando perfeitamente. Acendo meu último cigarro, que estava molhado na ponta. E sintonizo na rádio Kiss FM. Tava tocando Scorpions. Moment Of Glory. Depois toco Rock You Like A Hurricane. São músicas boas. Uma boa banda. Eu não estava tão perdido. Não sou o único que perdeu coisas nessa tempestade seguida de enchente. Ao menos estava ouvindo música e poderia dar um último trago. Achei uma garrafa de uísque boiando. É... eu não estava tão perdido.