1.4.15

Para tudo quanto é lado


            O sino do meio-dia tocava indicando que acordei cedo, logo; deveria voltar a dormir – mas não consegui, infelizmente. A vida numa tarde de domingo é tão vida como numa manhã de segunda-feira, mesma bosta. Assim, vivi aquele momento, sendo dominado por um sonho, dentro de outro sonho, e quando acordei, pensei estar sonhando, porém acordei de novo, e, só quando pude mijar na tampa da privada, realmente descobri que era um sonho, mesmo que não sendo um dos melhores, delirei eternamente. O infinito é magnífico, pensei.

            A luz no meu apartamento havia sido cortada por motivos secretos do governo. Água ainda tinha, em todas as pias. No chuveiro que era triste, aquela água gelada. Ao menos não cortaram, o que seria sacanagem, como eu vou fazer suco sem água? Difícil. Porém, pensei depois, que se cortassem a água, eu poderia usar o álcool da cozinha e assim colocar tudo no liquidificador, álcool em gel, pó de laranja tang, pedaços de gelo e bater tudo, mas é... Não tem energia.

            Um sujeito bateu em minha porta:

- Ei!

- Quem é?

- Abre aqui!

            Então abri.

- Por que está assim cara?

- Como?

- Está um caco!

- Não é fácil... Requer treino e disposição.

- É sério mano... Fica assim não! – e completou – NÃO DESANIMA!

- O.K.

            Ficou parado ali na frente da porta por alguns instantes. Uma pomba apareceu na janela, cagou, foi embora. Bela merda.

- E ai?

- Que?

- Cadê ela?

- Quem?

- Ela...

- Ela quem?

- Ta me zoando?

- Não...

- CADÊ ELA?

- Não sei...

            O rapaz ficou parado. Eu não sabia se o conhecia. Certamente me era familiar. Alguns aspectos parecidos com os meus... Pude notar que o sujeito era magro, magro mesmo. Olhos claros, verdes. Cabelos negros, encaracolados. Com isso e mais algumas coisas, era um grande bosta.

- CADÊ ELA PORRA?! – gritou exageradamente.

- Qual é cara?

            Apontou o dedo na minha cara e repetiu, desta vez, lentamente.

- Cadê, ela?

            Não sabia o que fazer. Comecei a me assustar. Pensei em fechar a porta e me esconder debaixo do cobertor. Certamente continuaria gritando do lado de fora, até a hora de se irritar mais e arrombar a porta, com qualquer força sobrenatural que encontrasse no lixo perto do elevador. Achei melhor encarar.

- Não sei.

            O sujeito rapidamente tirou uma pistola detrás da sua cintura e colocou o dedo no gatilho, afirmando que coragem ela tinha, só não educação.

- Eu não vou repetir mais uma vez... Escuta bem... Onde ela está?

            Neste momento pensei em fingir um desmaio. Talvez uma convulsão. Ou assumir homossexualidade e pedir o sujeito em namoro. Quase dancei uns passos de lambada, porém, achei melhor dizer:

- Ela está, onde ela sempre esteve.

            O sujeito parou. Colocou as mãos sobre a cabeça. Caiu de joelhos. Chorou. Chorou muito. Gritou no corredor; uivos de lobo. Achei que se ele fosse assumir homossexualidade, deveria ter feito antes –, e eu estava com medo.

- Mano...

- Que?

- Ela está...

- Sim.

            O sujeito levantou. Arrumou suas roupas. E saiu. Ouvi quando o elevador chegou e o mesmo foi-se embora.

            Pensei bastante em cortar o cabelo. Só que eu já estava devendo um corte no único cabeleireiro do bairro. Estava faminto. Desempregado. Tinha até dia 10 para entregar o apê – era dia 2. Os dias vão passar devagar, pensei. Uma chuva escandalosa se formou aos céus e presenciei um pequeno furacão ao lado sul da cidade, vi da minha janela, que ficava no 18º andar. Tirei o periquito que estava na gaiola e cortei sua cabeça com faca de serra da cozinha – seus olhos continuaram piscando e suas assas ainda batiam. Depois de um tempo, não mais. Puxei as penas que pude e raspei um pouco com a própria faca. Joguei álcool numa latinha de NESCAL e acendi com um fósforo – um belo fogão. Coloquei o pássaro em cima e pouco tempo depois estava pronto. Comi. Era bom. Tinha gosto de frango. Sabe o que dizem não é? Mais vale um pássaro no estômago do que dois voando...

            Quando passei pelo corredor, os outros três que estavam na gaiola cantavam num soneto engraçado para meus ouvidos. PI PI PI PRA CÁ, PI PI PI PRA LÁ. Era PIPIPI pra tudo quanto é lado.

            Deitei no chão e fiquei pensando.

            Bateram na porta, pouco tempo depois.

- E ai?

- Que?

- Cadê ela?

- Ela quem?

- Cadê ela, cara?

- De novo isso?

- Sim. Cadê ela?

            Fechei a porta e me escondi debaixo do cobertor. O que não adiantou de nada, por que a porta não tinha tranca. O sujeito entrou.

- TA FUGINDO É?

- Não. Acabei de almoçar. Deu sono.

- CADÊ ELA PORRA?

            Suspirei.

- Ela está onde ela deve estar. Onde sempre esteve.

- Ah, é?

- Sim.

            Antes do disparo a única coisa que pude ouvir foi um:

- Então dorme aí.

            POW!  

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