3.8.13

Nadando no nada

     Você esta parado, dentro de um cômodo, de um local qual você chama de casa. Não é uma casa, não é um apartamento. É em um prédio, as pessoas normais chamam de “kit-net”. É no décimo oitavo andar.

     Por ser um lugar pequeno e sem ventilação faz calor, e nos dias que fazem calor, o lugar parece um inferno. Ferve. E baratas surgem de todos os lugares e mais de cem mosquitos de luzes dominam o lugar. E se torna uma batalha. Qual espécie manda mais, qual espécie é mais forte. Não adianta veneno algum, os exércitos dos insetos sempre ressurgem das cinzas. Fogão, geladeira e no rádio. É como se fosse uma comunidade de insetos. Pelo menos não me sinto tão só, mas para piorar é verão. E também tem aranhas.

     Ligo o rádio e começo a ouvir uma música sinfônica, na frequência 103.3. Uma estação que fica com muitos “chiados”. Vou ao banheiro, peço licença para a barata e entro. Não tem porta no banheiro. Procuro um buraco, não é uma privada, é algo parecido com uma fossa. Acima tem uma aranha que fica me observando enquanto urino. A descarga é fraca e por isso precisa jogar um balde d’água quando se usa a privada. Saio do banheiro e me deparo com o exercito de formigas roubando meu açúcar. Eu li em algum lugar que uma formiga consegue carregar nas costas duas vezes o seu peso. Só não sabia que juntas conseguiriam levar 10 kg. Eu mal aguento meu corpo, imagine 10 kg.
                
     Vou à geladeira e procuro algo para comer, um pote de azeitonas, três ovos, pó de café, duas batatas, três tomates e mandioca. O que sobra é gelo e água.
                
     Estou com muita fome, terceiro dia que não coloco nada na boca além de café.
                
     Meu estomago grita, geme.
                
     Vontade de vomitar, mas não tem o que por para fora. Resolvi fritar os ovos. Procurei na dispensa óleo e sal, achei sal. Tinha um pouco de manteiga escondido, deveria estar vencido, a manteiga estava verde. Coloquei todos os três ovos na frigideira, joguei a manteiga e coloquei um pouco de sal por cima. Depois mexi tudo com a colher. Começou a subir um cheiro meio que de mofo junto com um azedo. O ovo estava com uma cara boa, verde com laranja. Coloquei no prato e observei. Com a mesma colher que usei para mexer, levei cheia de ovo a minha boca. Estava horrível, mesmo assim prendi a respiração e engoli tudo. Aquela música sinfônica estava piorando minha dor de cabeça. Desliguei o rádio e deitei no chão ao lado das baratas.

     Não tinha nem cinco centavos no bolso. Iria ir trabalhar às seis horas da tarde, voltaria às seis horas da manhã. Vigia noturno é um trabalho de preguiçoso, passo a noite toda dormindo, ouvindo música no radinho de pilha, às vezes dou uma volta no setor de descartáveis, fumo um cigarro com o outro vigia, conversamos sobre nosso salário, sobre futebol e rimos com acontecimentos hilariantes como: Brad Pitt irá interpretar Platão em um novo filme baseado no livro “A Republica”, de Platão. Ele é um bom ator, porém não para papéis como esse. Como Colin Farrell interpretou tão bem Arturo Bandini em “Pergunte ao pó”, o escolheria para o papel de Platão.

     Eram quase lá pelas quatro da tarde. O horário passa rápido quando não se tem nada para fazer a não ser esperar a hora de ir trabalhar.

     E sai de casa, me despedi de minhas companheiras e tranquei-as.
               
     Estava na frente do elevador, apertei o botão e aguardei. Sinto um incomodo no meu braço direito, começo a coçar. De dentro da minha blusa cai uma barata ao chão. Senti-me amado. Aonde vou, elas querem ir junto. Esse tipo de carinho que todos deveriam ganhar de seus conhecidos. O elevador chega e eu entro. Digo que não pode ir comigo, não iriam trata-la de certa forma.

Lá fora é perigoso, fique aqui. – Eu disse.

     Dentro do elevador, fecho a porta e aperto o botão. Como o elevador é velho e fica fazendo barulhos consigo ouvir o ranger das cordas de aço. Mais cedo ou mais tarde elas irão estourar. Seguro-me no ferro que estão em baixo o espelho e fecho os olhos. São os três minutos mais tensos dos meus dias. E ele desce como se estivesse despencando, numa velocidade incrível. Se ninguém em outro andar o chama, ele desce direto. Aproximadamente oitenta quilômetros por hora. E sinto um frio na barriga.

     E a moça do elevador diz:

Térreo. – Com isso abro os olhos, me sinto seguro e molhado.
                
     Continuo o resto do caminho andando com dor na lombar. Meu joelho esquerdo é quebrado, então ando mancando. Não me orgulho de ter quebrado o joelho andando de bicicleta. Orgulho-me de ter pegado atestado de um mês de repouso, não precisei ir trabalhar. Foi a semana mais feliz da minha vida. Lembro-me até de ter comido peito de frango. Esses sim eram bons tempos.

     Sigo subindo a ladeira da Rua Tabatinguera, e viro na Rua do Carmo. Vou em direção a Praça da Sé e chego ao meu local de trabalho. Em uma lojinha onde vende doces e descartáveis. O nome da loja é “Doces e Descartáveis”. Não vende papel higiênico, nem produtos de limpeza, a única coisa descartável que vende são copos. Vários doces. Porém não gosto de doces. E vou para meu posto, um quartinho minúsculo onde tem dois colchões. Um para o outro vigia e um é meu. Para que possamos deitar.

     Assim que já estou me acomodando no quartinho, colocando água no fogo para ferver e fazer café. O outro vigia se aproxima.

Café de novo Antonio? – O vigia diz.

Sim. – Eu respondo.

Sim, entendo... Você está bem? Parece-me pálido demais. – O Vigia diz.

Não, não estou bem. Ficaria bem se você pagasse os míseros cinco reais que me deve. – Digo. 

Calma, fique tranquilo... Eu irei te pagar. Sou um homem de palavra. Agora não tenho seu dinheiro, mas vou te pagar. – O Vigia diz.

     Um som devastador sai do meu estomago. Era como que se as lombrigas estivessem brigando por goles de café. O Vigia ouve o escândalo dentro de mim.

Que tal um jantar para pagar minha divida por enquanto? – Pergunta.

Jantar? Seria uma boa... Na situação que estou não negaria nem um osso. – Respondo.

Tudo bem, este é o plano. Esperamos todos irem embora. E quando for meia noite, você me encontra na frente da lojinha tudo bem? – O Vigia diz.

Tudo bem, te encontro lá. – Digo, e vou coar o café.

     Termino de coar o café e fecho a garrafa. Sem forças para apertar o botão com pressão acima da garrafa, desmaio no colchão.

     No meio de um sonho qual eu estava nadando em um mar aberto e tudo em volta era mar, eu acordo com o Vigia jogando um balde de água em mim.

Eu não disse para você estar lá na frente meia noite? – Ele me pergunta.

     Parecia alvoroçado e começa a me apressar.

Anda, vamos logo... Pare de mancar... – Diz.

     Puxando-me pela blusa. Estamos fora da lojinha e ele fecha a porta. Quando menos percebo estamos ao lado de uma fonte que fede a urina, do lado do coração de São Paulo.

     Estamos em uma fila, e não sei por que tenho que pegar uma fila na Praça da Sé depois da meia noite. Então pergunto ao Vigia o por que. Ele diz que essa é a regra, não podemos furar a fila se não arrancam nossos braços. Mesmo não entendendo fico igual a um peão no xadrez, só ando um passo ou dois e apenas para frente.

     Uma mulher velha com rosto feliz me entrega um dois pões franceses duros. E sem saber o porquê eu agradeço. Começo a comer o pão, e um homem atrás de mim diz:

Espera pela sopa meu filho, o pão molhado fica mais fácil de engolir. – Com um sorriso de três dentes.

Ah sim, muito obrigado. – Eu respondo, com um sorriso no rosto.

     E por um momento me sinto feliz e minhas lombrigas não estão me mordendo por dentro. Existe outra coisa para elas morderem, pão.

     Chego a frente a uma Combe e um rapaz barbudo me estende uma garrafa pet com a ponta de cima cortada, e dentro tem uma sopa de legumes com alguns pedaços de carne.

     Junto com o outro Vigia pegamos a sopa e os pães e voltamos para a lojinha. Sentados em nossos colchões terminando de comer a sopa e os pães, esquento o café.

Eu disse que iria te compensar amigo. – Diz.

Pelo menos por enquanto. – Retruco.

Tem um pouco de sopa na sua barba. – O Vigia diz.

     Me limpo e acendo um cigarro com o fogo do fogão improvisado.  Sinto-me bem, me sinto com força e possivelmente aguentaria mais de 10 kg de açúcar. Sinto-me uma formiga. Conversando com o outro Vigia, entro em um assunto sobre microondas.

Eles são essenciais em uma casa. Você pode fazer o que quiser neles. – É o que o Vigia diz.

Mas são caros? Consigo fazer sopa neles? – Pergunto.

Não são muito caros, e você pode fazer tudo neles. E o melhor, sai mais quente que água do seu chuveiro. – Ele diz.

     Porém não sabe que meu chuveiro está queimado.

     Então tenho uma ideia.

Ah sim, então, vou tirar um cochilo. – Digo e viro para o lado da parede. O lado direito.

     Cinco horas da manhã e acordo após várias braçadas. Gosto de nadar, nos meus sonhos sou como um peixe.

     Acendo um cigarro, e vou para frente da lojinha. Dou umas tragadas e observo o nascer do sol. O clarear. O rapaz que estava atrás de mim na fila da sopa passa empurrando um carrinho de supermercado, e acena para mim. Aceno de volta.

     Meu patrão chega e o ajudo a levantar a porta.

Senhor João, você poderia me arranjar um adiantamento? – Pergunto.

Mas garoto, para que você quer um adiantamento? – Responde.

     Nunca gostei que respondessem minhas perguntas com outras perguntas.

Preciso comprar um microondas lá pra casa, acha que pode me adiantar? – Digo. 

Você acha que posso te adiantar? – Mais uma vez, responde com uma pergunta.

Senhor. – Digo.

De quando você precisa garoto? – Pergunta.

Duzentos e cinquenta está bom. – Digo.

Tudo bem, mas irei descontar da sua hora extra. – Diz, e me da o dinheiro direto de sua carteira de couro.

Obrigado Senhor. – Digo e vou embora.

     Voltando para casa, descendo a Tabatinguera. Passo em uma loja de moveis usados na rua de onde eu moro. Lojas Barabras. E procuro por um microondas, acho um amarelo e grande. Parece a tela de um computador.

Quando está esse? – Pergunto ao vendedor.

Duzentos. – Diz.

Faz cento e cinquenta? – Pergunto.

Não camarada, é o preço da loja. Ta afim ou não? – Pergunta.

Ah sim, tudo bem. – Digo e entrego o dinheiro e espero ele embrulhar.

Ta esperando o que camarada? – Pergunta.

Não vai embrulhar senhor? – Pergunto.

Acha que isso aqui é Casas Bahia meu chapa? Pega ai e sai andando... Demoro? – O Vendedor diz.

     Sem entender nada, pego o microondas e vou em direção ao meu prédio. Antes de entrar olha para cima, ele quase encosta no céu. O microondas é pesado. E tem rachaduras no prédio. Sinto que a qualquer momento ele pode cair.

     Abro o portão da frente com o pé e entro no corredor para ir ao elevador. Uma mulher gorda abre a porta do elevador e eu entro. Agradeço pela gentileza. E aperto o botão para subir. E fecho os olhos. Cinco minutos de tensão, porque o elevador parou no décimo primeiro andar, e então chegou ao décimo oitavo. Salvo.

     Abro a porta e revejo minhas amigas, quando acendo as luzes elas se escondem debaixo dos móveis. Talvez não gostem de luz. Talvez sejam vampiras. Coloco o microondas na tomada e o ligo. Pego a mandioca na geladeira e deixo para esquentar por cinco minutos. Enquanto a mandioca esquenta, vou para o banheiro e ligo o chuveiro. Tomo um banho rápido, até porque com água gelada não da vontade de se molhar.

     Termino e me seco. Vou para a cozinha e a mandioca está com um cheiro bom. Tiro do microondas e está quente, quente demais. Deixo em cima da mesa para esfriar.

     Fico observando o microondas. Foi o dinheiro mais bem gasto na minha vida. Coloco uma bermuda e meu chinelo e vou para o mercadinho da esquina. Compro com os cinquenta reais que sobrarão, comida de microondas. Pipocas, hambúrgueres, miojos e sopas. Também uma lasanha dentro de um alumínio. Igual às marmitas.

     Como trabalho vinte e quatro horas no dia, tenho as outras vinte e quatro horas para descansar.

     Arrumo-me e vou para o pátio de uma igreja que fica a uma quadra de onde eu moro. Três minutos de tensão para descer. E quando chego ao pátio, sento na escada e fico tomando um sol. É quase onze horas. E sem perceber adormeço nas escadas. O sol era forte, as nuvens eram brancas. E crianças jogavam bola e andavam de bicicleta.

     Sonhando mais uma vez com o mar, o mar aberto... A água cristalina. Acordo molhado, da cabeça aos pés.

     Estava chovendo, chovendo forte. Era uma chuva com ventos e granizos. Tentei imaginar como um dia tão lindo poderia ter se tornado naquilo? Parecia uma tempestade, e os barulhos dos trovões impediram de que eu pudesse ficar ali pensando sobre a virada total climática. Com isso fui correndo em direção a meu prédio, e quando estava atravessando a rua ouvi uma buzinada e pulei para a calçada. Um carro quase me atropelou. Um menino de bicicleta me atinge e os dois caem. Odeio bicicleta. O menino levanta a bicicleta e começa a pedalar com mais velocidade, antes que eu pudesse dizer algo. Meu joelho começa a doer. E mesmo mancando tento correr para meu prédio. Todos estão correndo para seus lares. Guarda-chuvas estão voando. Quando viro para a minha rua, vejo que parece uma piscina. Ou por ser muita água, um mar. Um mar podre, nojento, cheio de lixo e um cachorro. Mas ele parece feliz. Passei ao lado dele. E o cachorrinho sorriu. A água vinha na minha cintura. Consegui entrar no meu prédio. A energia tinha acabado. Não quis esperar, a água já havia entrado no prédio. Então resolvi subir até o meu andar. Dezoito andares de escada, e meu joelho doendo.

     Depois de aproximadamente vinte minutos, estou no décimo sétimo andar e por causa dos meus chinelos molhados e escorregadios, escorrego e caio para trás. Voltando para o décimo sexto andar. As luzes de emergência se apagam. E meus dois joelhos estão doloridos demais. Abre um pequeno corte na minha testa e começa a sair sangue. Agarrando no corrimão consigo chegar ao meu andar. E me arrastando e escorrendo na parede chego na porta do meu “kit-net”.

     Procuro uma toalha e me seco, a maldita energia voltou. Passo água no meu sangramento e colo um Bandaid.

     Não estou arruinado por completo. Porém abro a geladeira e vejo que está desligada. Olho na tomada e ela está conectada. Então logo percebo que a geladeira queimou por causa da queda de energia. Agora sim, estou arruinado. Toda minha comida que está ai dentro vai se perder. Então para não perder, resolvo colocar no microondas para fazer tudo, já que vou perder, é melhor comer tudo de uma vez só. Então coloco a lasanha para esquentar cinco minutos. E as outras coisas eu deixo em cima da mesa. Vou para o banheiro secar e quando entro no cômodo de frente está todo molhado, meu colchão, meu rádio.     
       
     Ouço um estralar. Um barulho. Quase um choque. Um tiro. É meio que um “pipoco”. E vou para a cozinha, e vejo o microondas entrando em chamas. E só depois dos cinco minutos corridos que eu lembro o que o outro Vigia havia me dito:

“Não coloque alumínio e nem vidro dentro do microondas”.

     Eu não havia dado importância para isso. E meu microondas estava queimado, minha lasanha preta e pegando fogo. Minha comida toda em cima da mesa, para estragar. Minha geladeira queimada, preste a inundar minha casa com o gelo que ira derreter e virar água. Os outros cômodos e o corredor já estavam inundados pela água que entrou de baixo da porta. Meu colchão fedia mais que o cachorro surfista que estava no mar de merda junto a mim. Não me sobrou nada. Como poderia eu ter perdido tudo em uma enchente? No décimo oitavo andar? Perdi meu microondas, minha geladeira, meu colchão. Minhas amigas baratas sumirão. O cheiro de mofo mais forte surge aos poucos.

                Bom, existem dias que não foram feitos para dar certo. 


     Ligo o meu rádio, um caixa está muda e a outra funcionando perfeitamente. Acendo meu último cigarro, que estava molhado na ponta. E sintonizo na rádio Kiss FM. Tava tocando Scorpions. Moment Of Glory. Depois toco Rock You Like A Hurricane. São músicas boas. Uma boa banda. Eu não estava tão perdido. Não sou o único que perdeu coisas nessa tempestade seguida de enchente. Ao menos estava ouvindo música e poderia dar um último trago. Achei uma garrafa de uísque boiando. É... eu não estava tão perdido.  

14.4.13

Cinco segundos de Crazy Train

     Ai você acorda de manhã, primeiro às seis horas, e tira um cochilo. Depois às seis e vinte, quando o despertador te grita, e derruba você da parte de cima de seu beliche - de dois metros e dez de altura. Você só tem um e setenta e três. Então consegue chegar à salvo no solo. Vai até a cozinha e toma seu café, como todas as pessoas normais. Se troca enquanto come um bolo pela metade, pós aniversário de sua irmã. Depois sai em destino a prisão. Outros preferem chamar o local de escola, já eu, prefiro um termo mais próximo do real, prisão. No caminho está ouvindo alguma música de alguma banda que fala sobre a Califórnia. Você não está tão ligado há música, e sim em pensamentos ruins. Pensamentos ruins porque ontem foi o segundo dia no seu novo emprego - que você odeia. Telemarketing. As piores pessoas. O pior lugar. Com a pior localização. Sempre a mesma coisa, atende o telefone, procura pelo "fulano" com nome sujo na praça e força-o, gentilmente, a pagar, e caso haja uma recusa, dê-o desconto, caso contrário, ameaça-o mais uma vez, até ele desligar o telefone. Se desligar, liga de novo, e de novo. Quantas vezes necessárias até fechar um acordo, amigável. Ameaças sempre funcionam.

- Senhor, é para o seu bem. Só quero te ajudar.

Na verdade é pelo bem da empresa.

- Obrigado pela atenção.

Bom dia. Boa tarde. Boa noite.

     E ai a música acaba. Aquela que falava sobre Californicação? Isso mesmo, fornicação. E no mesmo momento você chega na prisão. Entra de cabeça baixa e vai para sua cela, que você divide com vinte pessoas. Talvez seja uma sala unissex, porque tem alguns indivíduos semelhantes à fêmeas. Mas não tem como ter certeza... Depois de ter entrado na prisão, caminhando cuidadosamente até sua cela, enquanto está sendo mirado, não só por uma, e sim muitas, incontáveis lentes verdes, pretas, azuis e castanhas. E se acontecer de seus olhos se encontrarem com os olhos - lentes alheias - acontece o inesperado. Tiro, granada, facada, arpão, flechada de uma besta, metralhadora Alemã, ou de Israel? AK-47, coisas assim. E não tem como se esquivar, nem como se esconder. E no momento que isso acontece, é como se tocasse o começo de Crazy Train, do Black Sabbath. Só o começo. Os primeiros cinco segundos. Depois dos fuzilamentos, você está sentado no centro da cela.

Você está Brás.

Você está na Mooca.

Você está na Liberdade.

Você está na Sé.

     Está debaixo de um ventilador, no centro da cela, e enquanto está no centro, a sensação do armamento pesado em volta é o dobro. E você só desvia o olhar. E para não sofrer danos maiores, levanta no meio da luz, fica no centro, debaixo do ventilador, e as janelas abertas com grades refletem o sol quadrado no meu olhar, e neste instante, enquanto os indivíduos falam coisas fúteis e banais, sobre homens, mulheres, e mais homens e mulheres. E de novo. E mais um pouco. E todos esses criminosos são iguais. Nenhum se difere. Tem um que é pai, e trás para a prisão o carro de bebê de sua filha, que também é criminosa. Lembro de um dia que nós-criminosos chegamos atrasado na prisão, e tivemos que pular o muro com arame farpado. Só que o criminoso pai, que se considera o Alfa, e que vende DVD's piratas, estava de carro. Motorizado com seu baby car. Debaixo onde tinha um espaço, havia uma bolsa aberta com fraldas e mamadeira. Desconfio que o liquido da pequena meliante era Vodka. E não podemos deixar o pai para trás. Começamos a chutar, frontal, com toda força, o portão da ala sul, que ficava na parte de trás da prisão. E com um golpe triplo e milagroso, o portão do inferno se abre. Mas infelizmente, no mesmo momento, os carcereiros militares estavam fazendo a ronda escolar. E nesse momento, os meliantes fogem como ratos. E o pai vendedor de DVD's piratas, só tem a opção de dar a fuga com seu carro rosa florido. E não sabemos mais dele. E depois de lembrar disso, volto a meu corpo, no meio da cela, enquanto o sol bate no meus olhos e grito.

- Hey!

Todos se calam.
Eu digo.

- Vocês estão aqui porque merecem estar aqui, e suas futilidades não me interessam. Vocês são a merda do mundo.

Me olham atentamente, com os olhos esbugalhados.

- Não falem alto, eu não quero saber de suas vidas.

Consigo sentir o medo, o cheiro do medo, e também de fralda. O pai deve estar aqui... escondido, quem sabe...

- Nessa prisão, o que prevalece é a igualdade, porque vocês, são cópias, cópias das cópias! Cópias da merda do mundo!

O cheiro de medo diminui e sinto alguém querendo me confrontar.

- A primeira regra da prisão, é que vocês não falam comigo! - Eu grito.

Espanto.

- A segunda regra da prisão, é que vocês não falam comigo!!! - Grito brutalmente.

Desespero.

- Apenas sigam as regras.

     Me sento e espero o carcereira que nos ocupa e passa-nos deveres e lições de casa. Doze matérias. Desnecessárias. Essa "escola" é uma farsa. Ninguém aprende nada. Me diz como alguém dá aula, se vinte meliantes falam sobre sexo, mulheres, homens, sexo, homens, mulheres, DVD's, IPHONE'S, fraldas, etc. Um contra vinte. Injusto...                                                                                                                                                          
   
     A carcereira chega, e começa a falar, sobre escravos, revoluções, leis e blá, blá, blá. Disso tudo, eu só pude entender a palavra "Guilhotina". Eu poderia entender mais... ouvir mais, se os meliantes seguissem as pequenas, simples, e singelas regras. Não só comigo, mas com todos. Se me ouvissem e ficassem sem falar, apenas aqui dentro da prisão, daria tudo certo. A palavra que eu ouvi foi "Guilhotina", e eles à merecem... Quem dera o governo fosse como no passado. Era ruim, agora ainda é ruim, mas antes era pior, ainda sendo melhor. Quem merecesse, guilhotina neles. Só haveria um ser na cela. Eu. Que depois disso, poderíamos trocar os nomes. Ou talvez não.
   
     E os meliantes continuam a falar, mulheres, homens, sexo, músculos, maconha, futebol, Neymar, zica, a rua é nós, vagalumes,  um milhão, tênis de quatro molas, bolas, ereção, DVD's, IPHONE'S, coca-cola.

E ninguém segue a maldita regra.

     Ninguém além do louco do Nietzsche. Na verdade o nome dele não é esse. Mas o chamo assim por conta de suas leituras constantes do "Anti Cristo". Sei que ele não entende. Mas acho que ele só tem esse livro, e por isso só lê ele. Também tem uma bíblia. Só que não entende ambos. Anda esquisito e tenta chamar atenção com uma loucura forçada. Ele é igual a escola, uma farsa, com livros que não precisa. Sinto que do meio para o final do ano, ele vira com uma metralhadora, e irá realizar seu próprio sonho enrustido e espiritual. A chacina na Prisão Estadual. Matar, no minimo onze pessoas. A bala de número onze já está predestinada, à mim. Eu sou o número onze.

Eu sei disso, porque eu sei disso.

     E depois disso, vem o cara que dorme. Ele vem a prisão apenas para isso. Dele não se sabe muito, só que passa a noite se masturbando, sempre pensando nos meliantes da prisão e tudo que eles dizem. Sem contar que também sabem que ele, sobre tudo, preferi não.

Está é sua merda de vida, e graciosamente ela está acabando, um minuto por vez.

     E acontece um dos momentos mais esperados por todos na prisão. O banho de sol e a hora da merenda. É uma gritaria insuportável, correria, comida - que te passará câncer e daqui três meses você estará entubado - mas mesmo assim você come. Por pode ser sua melhor refeição, ou a última.
   
     E os assuntos se multiplicam para muito sexo, muitas mulheres, muitos homens, muitos DVD's, muitos IPHONE'S, e por favor, menos fraldas. Queria eu fazer uma dupla com Nietzsche e matar todos e depois nos matarmos. Mas o fato de chegar perto dele já me deixa com vontade de fazer sabão.

E assim continua, essa mesma merda.

     Existe algo que li, que me deixa satisfeito:

Em uma linha de tempo longa o bastante, a taxa de sobrevivência de todos cairá para zero.

Conforto.

Ainda é de manhã, ainda não tocou o sinal para a saída. Mesmo assim, olha para as estrelas e desapareça.