28.6.14

Henriquewood


                                                                     "Sinta mais. Pense menos." – Charles BUKOWSKI.

            Entrei nesse tal bar, grande e limpo, em um cruzamento com a Rua Augusta, à espera de Henrique. Era tão limpo que nem parecia um bar, tinha mais pinta de salão de beleza. Achei uma banqueta vazia e sentei. Pedi uma cerveja. Eram quinze para as seis da tarde e o salão estava lotado. Muita gente em pé. Alguns pequenos grupos sentados. Outros dançando uns sons esquisitos que saiam de caixas sonoras embutidas por todo lado. A maioria era jovens, limpos, felizes, sorridentes – contemplando a ficção que era suas vidas melhoradas. Terminei a cerveja e esperei. Henrique estava atrasado.

            Olhei em volta e contei; duas mesas de sinuca, oito mesas para clientes – sem contar as do lado de fora –, um alvo de dardos solitários, duas portas para banheiros. Simpático, se não fosse pela muvuca. No relógio marcava seis e dez, nada de Henrique.

            Observei que uma garota vinha em minha direção, uma loira meio torta, com aspecto de estátua-viva da praça da sé, olhos vermelhos de marola. Estava acompanhada.

- ei, me paga um drink? – me perguntou.

            Olhei para ela, depois para o rapaz que estava de acompanhante. Olhei em minha volta, nada de Henrique. Olhei para trás, virei, e perguntei:

- quem? – desconfiando – Eu?

- sim, claro. – toda sorridente.

- pede para o rapaz aí. – apontando para o acompanhante.

- quem? – disse ela – ele?

- sim, eu não quero problemas. – e pelo que sei, ninguém nunca quer, né?

- ele não é nada – disse ela –, ele não é ninguém!

            Opa, que coisa. Quem ela seria para dizer que o rapaz não é nada? Estranho. Mesmo que eu os achasse iguais uns aos outros, uns nadas, eu não cheguei nem a dizer nada. Olhei o rapaz. Lacrimejava. Bem pálido. Tremia. Estava apaixonado, o coitado. Parecia um espantalho com olhos de corvo. Esbanjava tristeza. Quase me fez chorar. Pensei em abraça-lo, mas seria estranho. Resolvi não fazer.

- não me leve a mal – eu disse –, ou leve, mas cai fora.

- grosso! – disse ela –, não sabe o que ta perdendo. – e se foi.

            A gente nunca sabe o que ta perdendo, até perder. É claro. Foi melhor assim. O rapaz, acompanhante, sorriu. É impressionante o quanto as pessoas se contentam com pouco. O mais impressionante, é o quanto elas aguentam passar por um simples osso de tutano. Pedi mais uma cerveja, veio bem gelada. Vi o gelo no copo, esperei descongelar. Esperei Henrique. Ouvi várias risadas. Eu não queria estar lá. Antes de entrar, ao ver o lugar, eu não queria entrar. Existem tempos em nossas vidas, que tudo que queremos é afastamento total, de tudo – principalmente das pessoas. Mas tudo bem, eu não tinha mesmo consideração por nada além do meu prazer barato e egoísta. Pedi mais uma garrafa, para ir descongelando. E esperei.

            Espreguicei-me pensando que Henrique não viria. Olhei em volta e nada. Já passava das seis e vinte. Cheguei a esperar tanto, que já não era à espera de Henrique e sim, à espera de um milagre. Sentia-me bem depois da terceira garrafa – mesmo que andasse muito fraco para beber, como sempre. Logo depois, após poucos minutos, Henrique senta ao meu lado. Ufa.

- e aí, puto – ele disse –, foi mal o atraso.

            Um bom sujeito, Henrique. Um homem muito valente. Semana passada havia vendido seu antigo contrabaixo, e agora estava gastando o dinheiro com bebida – demais. Acendeu um cigarro e passou pra mim. Acendeu outro, deu uma tragada. Já era noite, o ar fresco, em geral, agradável.
           
- onde vamos agora? – perguntei.

- por aí – respondeu –, ainda não sei.

            Saiu andando na frente, segui. Ele fazia muito disso, não de propósito, mas fazia. Talvez não tivesse muito senso de direção.

            Andamos meio a esmo, mas o local era conhecido. Descemos toda a Rua Augusta e depois subimos outra paralela. Saímos na Avenida Paulista. Fomos até o MASP. Sábado à noite. Transbordava luz e sons para todos os lados. Henrique conversou com um ou dois rapazes, eu olhava os carros, ônibus, o asfalto, as cafeterias, arbustos, árvores – bom, tudo parecia interessante, a não ser as pessoas.  

- vam’bora, porra!

            Desliguei-me dos devaneios e continuei seguindo.

- como ta, mano? – ele disse.

- bem. – eu disse.

- então tá.

            Andamos mais um pouco e chegamos a outro bar, também cheio, mas de dois andares. Subi atrás de Henrique. Com certeza ele estava perdido.

- essa é sua ideia? – perguntei.

- a melhor que eu tive hoje. – respondeu.

            Concordei, até porque, era ele quem tava pagando.

            Sentamos em duas banquetas perto de umas das pontas. Atrás, um grupo de quatro gordos brancos barbudos e um fisiculturista amador gargalhavam, gritavam, zombavam e enchiam o saco de todo mundo.

- HAHAHAHAHA! – disse o bombado –, olhem esses dois magrelos!

- acho que ele ta falando da gente. – cochichou Henrique.

- jura? – eu disse

            Não passou disso. Era só uma piada de boas vindas. Para esquentar o clima. Logo o fortão começou a falar de quando tinha ido pra cama com uma garota, e explicou, com detalhes, para os outros, como era. Não que eles não soubessem, mas foi algo que por sinal, os fez rirem mais – mesmo que não houvesse um pingo de graça. É muita hipocrisia sair por aí falando de suas intimidades, coisa de gente baixa, mau caráter. Estúpido contar vantagem em algo desse gênero. Aliás, o clima não estava assim tão mal.

- sabe – disse Henrique –, vou sentir falta do Brasil.

- é mesmo?

- sim, o clima, as situações, a bagunça no geral.  

- acho que tá certo.

            Pedimos uma cerveja. Bebemos sem dizer nada. A atendente trazia mais e mais. Era pequena, cabelos castanhos, olhos também. Usava batom. Sorria.

- é disso que vou sentir falta. – disse Henrique, apontando a garçonete.

            Sorriram um ao outro. Ele disse em tom suficiente para ela ouvir com ouvidos sensíveis.

- tá certo, cara. Mas talvez ir embora seja pro seu melhor.

- é o que tento dizer a mim mesmo.

            As garrafas vieram em alta quantidade simultaneamente. Eu perderia a conta, se estivesse contando. Continuamos a beber e conversar. De repente sinto que não estou mais lá. Vejo Henrique conversando com a tal garçonete. Não estou mais lá. Todos fazem seus papéis, eu me perco, confuso, sem saber qual é o meu. Continuo levando o copo à boca. Henrique continua enchendo os copos – o meu e o dele. A garçonete continua com seus movimentos pélvicos, sugerindo a Henrique, o máximo que sua mente pode imaginar. Alguém grita por ajuda em algum beco escuro. O cheiro no ar é de fornicação, carnificina, mijo. Os sons cada vez mais irritantes. Não vale a pena, não vale.

            E aí, de repente, surpreendo-me quando me pego em casa, (na casa de Henrique). Estou sentado no sofá onde só tem um espaço e Henrique está com a Garçonete, que há essas horas já está aberta para negócios – apenas com Henrique – e nos liberou seu nome: Judia. Engraçado, não?

            O lugar onde Henrique mora é pequeno. Há espelhos em tudo quanto é lado e ninguém sabe pra que. Os espelhos... Servem de que? Já parou para pensar nisso? Sabe... Quando você olha para o espelho, como tem certeza de que aquele reflexo é o seu? Por que é seu? É realmente você? E como sabe que é você? Sim, deve ter alguma explicação comprovada cientificamente. Mas quando você olha no espelho, o reflexo que vê, é o mesmo que queria ver? Você não sabe. Mas sabe como eu sei disso? Por que Henrique sabe disso.

            Quando acordei, vi que Henrique já estava acordado. Fazia café.

- cadê Judia? – indaguei.

- foi embora, ia pegar o turno da manhã hoje.

- vai vê-la de novo?

- sim, hoje à noite.

- gostou dela, não foi?

- um pouco.

            Levantei-me e fui ao banheiro. Lavei o rosto. Olhei para o espelho, mas por quê? Ninguém sabe. Ninguém nunca sabe. Voltei para a sala e me servi de café preto puro.

- ta um caco hein. – Henrique disse.

- cale a boca, todo mundo tem cara de bunda quando acorda.

            Voltei para meu café. Percebeu como o café pode salvar sua vida? É algo feito com o intuito único de ser aquilo mesmo. Ele não força. É feito para aquilo e só faz aquilo. Incrível como algumas coisas fazem tanto sentido e outros não.

- Henrique – eu disse –, um cara me disse que eu me acho melhor do que os outros por que eu leio livros, isso é verdade?

- não.

E ai nós rimos, rimos, mas rimos tanto, tanto, que puta merda! Até pensei que tínhamos enlouquecido. E então tive que me levantar, terminei o café e rodei pela casa por que nada mais fazia sentido.

- este mundo que vivemos é mais fictício que o de “Harry Potter”. – Disse Henrique.

- admito, Harry Potter faz mais sentido que a “realidade”.

            Olhamos pela janela e o clima estava bom. Sabe aquele clima, limpo, suave, claro, com sol e ar fresco? Aquele clima que faz pairar em sua mente que este é o dia? Que tudo vai dar certo e nada pode estragar? Então, infelizmente em algum lugar explodiu uma bomba atômica nuclear 300 mil vezes mais potente do que a própria Hiroshima. Ninguém sabe como, nem o porquê. Ninguém nunca sabe. Só que foi suficiente para explodir justamente no nosso país. Como sei disso? Por que Henrique sabe disso. Sim, nem tudo tem explicação. A vida é tão boa quanto ela precisa ser. Um pombo fritou. Um gato também. Aquele ar quente vinha em velocidade. Boa sorte, Henrique. Tomei mais gole de café, tava frio, mas, jogo esquentou. BUUUUM! Já era. Nem tudo que era pra ser, realmente era.